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Building peace in the minds of men and women

Nosso Convidado

Abdullahi Ahmed An-Na’im: sobre direitos humanos, o Estado secular e a xaria atualmente

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Abdullahi Ahmed An-Na’im.

Um especialista em direitos humanos em perspectivas interculturais, Abdullahi An-Na’im procurou conciliar sua identidade como muçulmano sudanês com seu firme compromisso com os direitos humanos. Ele argumenta que os direitos humanos devem ser centrados nas pessoas, não no Estado. Explicando suas opiniões controversas, An-Na’im diz que espera oposição às suas ideias. “Se não se opõem a mim, não sou relevante”, ele insiste

Entrevista por Shiraz Sidhva

Quando se refere aos “três Cs” dos direitos humanos, o que exatamente o sr. quer dizer?

Eu às vezes falo em termos dos “três Cs” dos direitos humanos – o conceito, o conteúdo e o contexto.

O conceito é a universalidade – nós falamos de direitos humanos como os direitos do ser humano, mas o que queremos realmente dizer com isso? Somos mesmo capazes de proteger os direitos do ser humano como tal? Que Estado faz isso? Infelizmente, a verdade é o oposto – a retórica dos direitos humanos é utilizada pelos Estados como uma arma para demonizar uns aos outros em suas políticas de poder, ao invés de serem princípios universais de políticas públicas para proteger a dignidade de todos os seres humanos.  

O segundo c se refere ao que esses direitos são e, aqui, devemos admitir que é um trabalho em desenvolvimento, em vez de já implementado como política pública na prática.

O terceiro c levanta a questão de saber se os princípios dos direitos humanos são operacionalizados na prática e disponibilizados às pessoas cujos direitos estão sob ameaça. O que os direitos humanos significam para uma pessoa que vive na pobreza extrema e permanente no Cairo, em Karachi ou em Lagos – que diferença os direitos humanos fizeram em sua vida?  

Qual deve ser o papel do Estado na proteção dos direitos humanos?

Penso que a proteção dos direitos em qualquer lugar acontece no âmbito dos direitos civis, não no âmbito dos direitos humanos – em outras palavras, a proteção é concedida pelos Estados aos cidadãos e aos assim denominados “residentes legais”, nunca aos seres humanos como tal.

É por essa razão que os refugiados e os trabalhadores migrantes, por exemplo, não desfrutam da proteção de seus direitos humanos como proclamados pela Declaração Universal dos Direitos Humanos (DUDH). Mesmo os direitos dos cidadãos e dos residentes legais são determinados pelo Estado a cada etapa do caminho. São sempre os Estados que decidem negociar tratados com outros Estados, ratificam ou ignoram tratados internacionais relevantes, e determinam a forma e o escopo da proteção dos direitos de qualquer pessoa sujeita à sua jurisdição.

Todo o campo dos direitos humanos está sob a autoridade da soberania estatal. O direito internacional mundial não pretende forçar qualquer Estado a fazer qualquer coisa. As Nações Unidas e todas as outras organizações internacionais são constituídas e administradas por Estados, e podem fazer apenas o que os Estados lhes permitem fazer, no âmbito e na forma autorizada pelos Estados.

Tudo isso pode ser adequado para a atual condição do desenvolvimento humano, mas esses princípios não são bons para a proteção dos direitos humanos. É por isso que eu falo do paradoxo da autorregulação dos Estados, em oposição aos direitos fundamentais arraigados que deveriam estar além do controle e da manipulação estatal.

Mas então, como podemos garantir o respeito aos direitos humanos?  

Não quero dizer que não precisamos dos direitos humanos, ou que sua proteção não pode ser realizada na prática. O ponto que eu gostaria de enfatizar é que devemos ter clareza quanto a de onde vêm os direitos humanos e de que maneira, incluindo questões sobre como esses direitos são definidos e como são operacionalizados.

IA meu ver, os direitos humanos devem ser definidos pelas pessoas que os aceitam e vivem por eles na prática, e não impostos por antigas potências coloniais em suas antigas colônias, ou por delegados de Estados pós-coloniais e burocratas internacionais.

Em segundo lugar, as normas de direitos humanos devem ser implementadas por meio de etapas contextuais realistas que sejam adequadas às necessidades e aos recursos das comunidades relevantes, e não pela promulgação de uma legislação enfática a ser apresentada em aprazíveis reuniões de organizações internacionais e conferências diplomáticas ou acadêmicas.

Em terceiro lugar, as estratégias de implementação devem ser profundamente contextuais e sob o controle dos seres humanos, sujeitos desses direitos em todos os lugares.

O sr. poderia nos dar um exemplo disso?

Se eu quiser combater a mutilação genital feminina (MGF) no Sudão, por exemplo, não posso fazê-lo por meio de uma declaração emitida em Genebra. Não posso fazê-lo nem mesmo pelo estabelecimento de uma lei do próprio governo do Sudão. No entanto, posso fazê-lo mudando as atitudes nas comunidades. Essa é a chave.

No Sudão, os britânicos propuseram e foi aprovada uma emenda ao Código Penal para tornar a MGF punível com dois anos de prisão, em 1946, o ano em que nasci. Tenho agora 72 anos de idade, e a MGF ainda existe para mais de 90% da população. Que eu saiba, não houve um único processo. O assassinato em nome da “honra” é um problema similar. Essas são áreas onde claramente devemos ter uma transformação.

Qual é a melhor maneira de provocar mudanças?

Nós precisamos ir além das ideias burocráticas e em fórmulas – para inspirar a imaginação das pessoas e para provocar a mudança.

Algumas vezes, as pessoas não tentam provocar mudanças porque acreditam não ser possível. Mas elas estão erradas. Veja como o pensamento transformador funcionou no movimento pelos direitos dos homossexuais, por exemplo, em um curto período de 20 anos. Quando eu me mudei para Atlanta, Geórgia, nos Estados Unidos, em 1995, a sodomia era um crime pelo qual um indivíduo era mandado para a prisão. Em 2015, tornou-se um direito constitucional que casais do mesmo sexo pudessem se casar.

Quando se pensa na velocidade com que essa transformação aconteceu, fica claro que não é necessário começar com a mudança legal. Na verdade, se se começar com a mudança cultural e social, a transformação em uma comunidade é realmente a força motriz da mudança, não a consequência da mudança.

Quando se refere à cultura dos direitos humanos, a qual pode ser promovida por meio do discurso interno e do diálogo intercultural, o que exatamente o sr. quer dizer?

Por “cultura dos direitos humanos”, eu me refiro a valores internalizados – desde a socialização precoce das crianças – que são reforçados ao longo de nossas vidas. Esses valores tendem a apoiar o respeito pelos direitos humanos e a proteção dos direitos humanos dos outros, embora eles possam não ser identificados nesses termos. Dentro dos seres humanos, e entre suas comunidades, existem impulsos a favor do respeito à dignidade do outro, e também um esforço pela harmonia intercomunitária, pela coexistência e pela interdependência mútua.

A meu ver, todos esses são valores de direitos humanos, embora não estejam representados como tais no discurso comum. Tenho defendido, desde os anos 1980, que se cultive a cultura dos direitos humanos para cada comunidade, como a base para o aprofundamento e a expansão do consenso internacional dentro das culturas, bem como pelo diálogo entre diferentes culturas. O livro que editei em 1992,  Human Rights in Cross-Cultural Perspectives: A Quest for Consensus, (Os direitos humanos em perspectivas interculturais: uma busca por consenso, em tradução livre), discorre sobre isso.

Em um âmbito mais pessoal, como o sr. começou a se interessar pelos direitos humanos a partir de uma perspectiva islâmica?

Enquanto eu lutava com minha própria fé conflitante no Islã e a oposição à xaria, nos anos 1960, tive a sorte de encontrar o ustadh [professor reverenciado] Mahmoud Mohamed Taha. Foi sua interpretação inovadora do Islã que me ajudou a conciliar minha fé no Islã e o compromisso com a defesa dos direitos humanos..

O ustadh Taha era sudanês, engenheiro por profissão, e um muçulmano sufi reformista por orientação religiosa. Ele participou da luta pela independência do Sudão nos anos 1940 e foi prisioneiro político sob a administração colonial anglo-egípcia do Sudão. Ele também foi fundador e presidente do Partido Republicano, que fez campanha pela independência do Sudão como uma república democrática – daí o seu nome. Após ter ficado preso por um longo tempo, o ustadh Taha passou por um período de disciplina religiosa e ressurgiu em 1951 com uma interpretação reformista do Islã.

Após sua trágica execução em janeiro de 1985, e a supressão de seu movimento pela reforma no Sudão, deixei meu país natal, mas continuei a desenvolver meu próprio entendimento e aplicação da metodologia da reforma de meu professor, e me esforcei para viver a seu exemplo.   

Conte-nos mais sobre o seu projeto Futuro da Xaria.

Meu projeto atual Future of Sharia (Futuro da Xaria) combina diversos temas do meu trabalho acadêmico com a defesa por mudanças sociais, uma vez que esses elementos evoluíram no meu pensamento desde meus dias de estudante de direito nos anos 1960 até a atualidade. Em termos de reforma e estudos islâmicos, eu consegui conciliar o meu compromisso com um Estado secular [Estado laico] a partir de uma perspectiva islâmica, como havia feito anteriormente a respeito dos direitos humanos, com minha religião.

or meio da minha página de internet/blog, tenho convocado um debate público mundial sobre as ideias fundamentadas em meu livro de 2008, Islam and the Secular State (O Islã e o Estado secular, em tradução livre).

Estou convencido de que as ideias de direitos humanos e cidadania são mais consistentes em relação aos princípios islâmicos do que quanto às alegações de um suposto Estado islâmico para aplicar a xaria. No livro, eu apresento argumentos islâmicos para a separação do Islã e o Estado, ao mesmo tempo em que se regula a relação entre o Islã e a política. Defendo que a aplicação coercitiva da xaria pelo Estado trai a insistência do Alcorão pela aceitação voluntária do Islã. A devoção individual pode ser conciliada com a identidade religiosa coletiva – para ser um muçulmano por convicção e livre escolha, que é a única forma de alguém ser muçulmano, eu preciso de um Estado secular, que seja neutro em relação à doutrina religiosa e que promova uma verdadeira observância religiosa.  

Abdullahi Ahmed An-Na'im

Acadêmico e autor jurídico reconhecido internacionalmente, o sudanês-norte-americano Abdullahi Ahmed An-Na'im é o Charles Howard Candler Professor of Law na Emory Law em Atlanta (Estados Unidos), professor associado na Emory College of Arts and Sciences e pesquisador sênior do Centro para o Estudo de Direito e Religião da Emory University.