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Building peace in the minds of men and women

Assuntos Atuais

Memórias de Sandy Koffler, meu avô

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Sandy Koffler em seu escritorio, na UNESCO, nos anos de 1970.

Este ano, 2018, O Correio da UNESCO celebra o 70º aniversário da publicação de seu primeiro número, que ocorreu em fevereiro de 1948. Para marcar essa ocasião, a revista presta uma homenagem íntima a seu fundador, Sandy Koffler (1916-2002), convidando sua neta, Aurélia Dausse, a compartilhar algumas de suas memórias e trechos dos cadernos do avô.

Aurélia Dausse

A imagem que tenho do meu avô é a de um homem rodeado por livros. Ele estava sempre com um dicionário nas mãos. Aliás, era um poliglota – ele tinha domínio perfeito de inglês, francês, espanhol, português, italiano, hebraico e chinês. Sempre o via fazendo anotações em um dicionário grande e preto, seu dicionário de chinês – a língua de que ele mais gostava e da qual acabou falando sete dialetos! Incrivelmente, em sua casa, nós tínhamos permissão para escrever nos dicionários. Com ele, os livros se tornavam algo vivo. Muito mais do que algo a ser simplesmente usado, os livros eram como membros da família, que se convidavam a sentar em nossa mesa a qualquer momento durante a refeição.

Sandy tinha o pensamento ágil, era entusiasmado, imaginativo e curioso. Ele estava sempre aprendendo algo de novo e amava compartilhar o prazer de estudar com a família – e com o quanto mais gente fosse possível. Foi isso o que ele fez ao longo de sua vida como jornalista e, em particular, durante seu tempo em O Correio da UNESCO.

Sandy faleceu em 2002. Ele deixou para trás um tesouro, que eu descobri recentemente quando comecei a pesquisar sobre a história da minha família: seu diário de guerra pessoal, suas cartas, seus cadernos, suas fotos e uma coleção completa e encadernada de O Correio. Muitos pedacinhos de vida que descrevem a extraordinária jornada de um homem excepcional. Fico profundamente comovida de poder prestar homenagem a ele, nas páginas da mesma Revista que ele fundou e dirigiu por 30 anos, de fevereiro de 1948 a janeiro de 1977.

De Nova York a Paris e de volta

Sandy Koffler nasceu em Nova York, filho de imigrantes originários da cidade de Chernivtsi, na região da Bucóvina, Romênia – agora uma cidade no leste da Ucrânia. Como muitos outros, sua família chegou aos Estados Unidos via Ellis Island, a pequena ilha (no Porto de Nova York) que abrigava o posto federal de imigração. Seu pai, Berl Koffler, depois de um início modesto vendendo água com gás nas ruas, tornou-se um rabino conhecido na cidade. Ele se mudou para Williamsburg, no Brooklyn, onde Sandy nasceu em 24 de outubro de 1916.

Depois de frequentar a City College de Nova York, Sandy ganhou uma bolsa para estudar na Sorbonne, em Paris. Em 1940, enquanto estava estudando em Bordeaux, o consulado norte-americano o aconselhou a deixar a França por ser judeu. Apaixonado pela cultura e pela língua francesa, ele relutou em ir embora, também por causa de sua vida amorosa, que o prendia a Bordeaux. Além disso, ele estava seguro de que sua cidadania norte-americana o protegeria. Porém, quando os nazistas invadiram a França, ele finalmente foi para Marselha embarcar em um dos últimos navios que partiram para os Estados Unidos. Durante uma longa escala em Portugal, Sandy aproveitou a oportunidade para aprender português.

Vida em Nova York

De volta em Nova York, Sandy conseguiu emprego como colunista de meio-período da revista semanal America e também aprendeu as técnicas de impressão. Ao mesmo tempo, ele frequentou seminários do antropólogo francês Claude Lévi-Strauss na New School for Social Research. Lévi-Strauss também havia deixado a França logo antes da Ocupação, e os dois se tornaram amigos.

Vários anos depois, eles se encontrariam novamente em Paris, um como editor-chefe de O Correio, o outro como um dos autores da primeira Declaração sobre Raça da UNESCO (1950), e autor de Race and History (1952), um dos grandes clássicos da literatura antirracista. Koffler viria a convidar regularmente Lévi-Strauss para contribuir com O Correio nos anos 1950, de forma que muitos dos artigos fundamentais de antropologia foram publicados pela primeira vez no Periódico, antes de serem reimpressos em livros. [Nota do editor: uma edição especial de O Correio com a maioria dos artigos de Lévi-Strauss foi publicada em 2008, com o título de Claude Lévi-Strauss: The View from Afar.]

A atmosfera de guerra motivou Sandy a se alistar e trabalhar para a Divisão de Guerra Psicológica do Exército Norte-americano (Psychological Warfare Branch – PWB). Ele foi treinado no Gabinete de Informações de Guerra (Office of War Information – OWI), uma agência de informação do governo norte-americano, que queria usar métodos modernos de propaganda em massa para disseminar ideias pacifistas. Ele foi enviado a Rabat (Marrocos) em um Liberty Ship norte-americano, navio cargueiro que levava mantimentos às Forças Aliadas durante a Batalha do Atlântico. Lá, ele trabalhou como correspondente e diretor de informação para a estação de rádio Voice of America, desenvolvendo uma programação contínua de transmissão de notícias de todo o mundo. Em 1944, ele escreveu em seu diário: “Não posso descrever o quanto amo este trabalho, sinto que é útil e que vale a pena”.

Sandy foi então enviado à Itália, onde elaborou um boletim para informar as pessoas sobre o avanço dos Aliados e para promover a paz. O boletim era chamado de Corriere di Roma, Corriere di Venezia, Corriere Veneto ou Corriere dell’Emilia (Bologna), dependendo da cidade ou região libertada em que era publicado.

Nasce O Correio

Com o fim da Segunda Guerra Mundial, Sandy voltou à França e passou a se interessar por esta nova organização internacional, cujo objetivo era fomentar a paz por meio da ciência e da cultura em um mundo traumatizado, e que estava repercutindo nos círculos internacionais de todo o mundo – a UNESCO. Sua sede era em Paris, no Hôtel Majestic, Avenue Kléber, 19. A Organização publicava um informativo mensal de duas páginas em preto e branco, The Monitor, em inglês, francês e espanhol. O jovem jornalista e colunista ofereceu seus serviços e começou a trabalhar no dia 26 de outubro de 1947, no dia em que completou 31 anos.

Foi em 19 de novembro do mesmo ano que ele enviou a proposta de uma revista – com sua linha editorial e periodicidade, um esboço de suas diferentes seções, o número de colunas por página, a extensão dos artigos, a fonte tipográfica – a Harold Kaplan, o primeiro diretor do Departamento de Informação Pública da UNESCO. Em resumo, um projeto completo, que viria a se tornar mais um Corriere – o da UNESCO.

“O trabalho da UNESCO é tão variado, seu programa inclui um número tão vasto de temas cuja importância é vital em todas as áreas de educação, ciência e cultura, que não deverá ser nada difícil reunir artigos vigorosos e interessantes”, ele escreveu. De forma ambiciosa, ele não queria limitar o conteúdo da revista somente às ações da UNESCO, mas também oferecer aos leitores um apanhado da imprensa internacional, entrevistas com figuras proeminentes da Organização e do mundo da cultura e da ciência, bem como artigos elaborados a fundo, escritos por especialistas de todo o mundo.

Ele sugeriu contratar editores qualificados para as edições francesa e espanhola, para que elas não fossem simples réplicas e parentes pobres da edição inglesa. Ele se propôs a “garantir que a revista atingisse os mais altos padrões para ser vendida ao público em geral”.

Sandy foi bem-sucedido em todas essas frentes, e em tempo recorde. O primeiro número de O Correio da UNESCO, uma revista ilustrada com oito páginas bem preenchidas, foi produzida pela gráfica do New York Herald Tribune, em Paris, em fevereiro de 1948. Uma assinatura de seis meses foi oferecida para os leitores internacionais, por meio de agentes em 15 países da Europa, da Ásia e da América. Com isso, nascia uma das primeiras revistas internacionais do mundo.


Sandy Koffler (segundo à esquerda) com a equipe de O Correio em sua primera sede no Hotel Majestic, em París (1946-1958)

O Correio amplia seu alcance

Em 1957, O Correio confirmou seu alcance internacional, com o surgimento de sua primeira edição “de campo”, publicada em Moscou. O caminho estava livre para que outros países seguissem os mesmos passos. Em 1960, surgiu uma edição em alemão, em Berna (Suíça). Em 1961, uma edição em árabe foi lançada no Cairo (Egito), assim como uma edição em japonês, em Tóquio. Em 1963, veio a edição italiana, em Roma. Em 1967, duas edições, em hindi e em tâmil, foram lançadas na Índia. Entre 1968 e 1973, vieram as edições em hebraico, persa, holandês, português e turco. Quando Sandy se aposentou, em fevereiro de 1977, O Correio estava sendo publicado em 15 línguas. Em 1988, as edições da revista atingiram seu ápice, aparecendo em 35 línguas.

Para Sandy, a multiplicação do número de versões em outras línguas de O Correio era uma forma de construir pontes entre as pessoas. Foi isso o que ele disse em Madras (agora Chennai), na Índia, durante o lançamento da edição em tâmil: “No passado, as nações eram autocentradas. Nos últimos 20 anos, nós testemunhamos um fenômeno impressionante de países olhando muito além de todos os limites para o horizonte, para todos os cantos do mundo, para trabalhar em conjunto em prol da paz e da compreensão. Essa é a mensagem que a UNESCO e toda a família das Nações Unidas está tentando realizar. Nesta tarde, tive o privilégio de encontrar o ministro-chefe [do Estado de Tamil Nadu]. Ele me informou que Madras está preparada para seguir em frente e nos deu permissão para produzir uma edição em tâmil de O Correio. Como editor-chefe de O Correio, meu sangue vibrou quando ele disse isso, porque essa é uma conquista”.

Sobre a lealdade de Sandy

Sandy Koffler foi indiscutivelmente um grande profissional, dotado de sólidas habilidades interpessoais. Um amigo próximo de figuras importantes que marcaram o século XX – tais como o etnólogo suíço Alfred Métraux e o engenheiro e pintor norte-americano Frank Malina, ambos colegas na UNESCO –, ele gozava de prestígio com os primeiros sete diretores-gerais da Organização. Um deles, René Maheu (de 1961 a 1974), diria sobre ele que seu “talento jamais vinha separado de suas convicções”.

Determinado e carismático, um trabalhador incansável a serviço dos ideais de paz da UNESCO, sempre tendo cuidado em permanecer politicamente neutro, mesmo com o aumento das tensões internacionais durante a Guerra Fria, Sandy Koffler tinha um caráter inflexível: “Ele nunca aceitava ordens, nem mesmo dos mais altos oficiais diplomáticos e políticos norte-americanos; ele era intransigente e inabalável, e isso causou alguns problemas para ele”, disse Pauline Koffler, sua segunda esposa.

Um cidadão do mundo

Em um documento administrativo da UNESCO de 1959, li sobre ele que sua “competência profissional, suas qualidades técnicas, suas faculdades criativas, sua iniciativa e sua imaginação fazem dele um jornalista e um editor-chefe de calibre excepcional. Ele tem um apurado senso de responsabilidade, uma profunda consciência profissional, qualidades inegáveis como organizador e líder e a capacidade necessária para ser um diretor”.

Outro documento de arquivo muito menos formal, sem data nem assinatura, revela outro aspecto do caráter de Sandy: “É verdade que a lealdade de Sandy à UNESCO, às Nações Unidas e aos seus ideais era evidente e inabalável. Eu me lembro de que, todos os anos, três colegas – Émile Delavenay, Thor Gjesdal e Sandy Koffler –, que raramente eram vistos juntos na cidade, se reuniam em 24 de outubro, por volta do meio-dia, em um restaurante parisiense, para celebrar seus respectivos aniversários, e também, com um brinde especial, o aniversário da entrada em vigor da Carta das Nações Unidas”.

De minha parte, sempre admirei meu avô, sua inteligência e seu caráter. Sou muito grata a ele por haver transmitido seu apego aos valores humanistas, seu amor pelos livros e sua fascinação pelas culturas de todo o mundo.

Mergulhar em seus arquivos pessoais e profissionais me fez querer recontar, em um documentário em que estou trabalhando no momento, a história fascinante desse norte-americano que amava a França e que sempre me dizia: “Eu sou, acima de tudo, um cidadão do mundo”.

Leia mais:

One year ago this month the nations united to defend collective security (1951)

Biblioteca infantil: a paradise for Sao Paulo's children (1953)

Rabindranath Tagore: 'I have fallen under the enchantment of lines' (1957)

Kenzo Tange and the megalopolis of tomorrow (1968)

Aurélia Dausse

Diretora, roteirista e atriz franco-americana. Ela estudou na Universidade de Harvard.