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Building peace in the minds of men and women

Ideias

O Correio da UNESCO chega aos 70 anos! Uma leitura inspiradora

Desde sua primeira edição, em 1948, o impacto desta revista icônica tem sido imenso, conquistando leitores em todo o mundo com uma ampla variedade de temas, muitas vezes com textos dos maiores nomes de cada área. As ações da UNESCO contra o racismo foram prioridade na agenda desde o início, e O Correio sempre ofereceu uma poderosa plataforma para debate e discussão desse preconceito perigoso e disseminado que continua a assolar nosso mundo.   

Por Alan Tormaid Campbell

A UNESCO foi fundada em meados dos anos 1940. Em lembrança aos horrores da Segunda Guerra Mundial, o preâmbulo da Constituição da UNESCO inclui uma frase que é, ao mesmo tempo, assustadora e inspiradora: “Uma vez que as guerras se iniciam nas mentes dos homens, é nas mentes dos homens que devem ser construídas as defesas da paz”.

Richard Hoggart, um acadêmico britânico que foi diretor-geral assistente da UNESCO (1971-1975), escreveu: “As declarações extraordinárias presentes na Constituição da UNESCO – de que os governos promoverão coletivamente a busca por conhecimento e sua livre circulação – têm os ares de seu tempo. O mundo havia acabado de passar por uma guerra terrível e prolongada... O impulso [...] de que as pessoas deveriam entender melhor umas às outras por meio de melhorias na educação e em todas as formas de intercâmbio cultural e científico, a ênfase entusiasmada na verdade, na justiça, na paz e na importância do indivíduo – esses impulsos eram quase irresistíveis” (HOGGART, R. An Idea and Its Servants: UNESCO from Within. London: Chatto and Windus, 1978. p. 27-29). E a UNESCO foi muito ambiciosa na busca desses princípios.

Desde a sua criação, a UNESCO tinha um boletim para declarações oficiais e notícias, mas, em 1948, decidiu-se criar O Correio da UNESCO, um periódico mensal popular para manter o público informado sobre os ideais e as atividades da Organização.

O Correio começou com edições em três línguas: inglês, francês e espanhol. Esse número foi aumentando com o passar dos anos até que, em 1988, edições em 35 línguas estavam sendo publicadas – e mais quatro edições em braile, em quatro línguas.

Em 1949, foram produzidas 4 mil cópias da revista; esse número aumentou para 500 mil no início dos anos 1980. Estimou-se que cada cópia seria lida por mais de quatro pessoas, o que significa que O Correio tinha uma base de leitores de mais de 2 milhões de pessoas. A revista podia ser adquirida em bancas de jornal; também era possível assiná-la ou encontrá-la em bibliotecas.

O Correio nunca ganhou notoriedade no Reino Unido ou nos Estados Unidos. Porém, se você perguntar às pessoas – especialmente pessoas na casa dos 50 –, em outros países, é impressionante quantas dirão: “Sim, eu me lembro do Correio. Costumávamos comprá-lo”, ou até mesmo: “Foi nele que aprendi o que é antropologia”. Eu mesmo ouvi declarações semelhantes de pessoas em lugares tão diversos quanto Indonésia, Índia, Paquistão, Gana, Brasil e Jamaica.

Amplos horizontes globais

O Correio foi fundado pelo notável Sandy Koffler. O propósito da revista era – para usar esta famosa frase – ter “Uma janela aberta para o mundo”, através da qual os leitores pudessem avistar os “amplos horizontes globais”.

Koffler, um estadunidense, graduou-se pela City College de Nova York, e estava estudando na Sorbonne quando seus planos foram interrompidos pela Segunda Guerra Mundial. Juntando-se à Divisão de Guerra Psicológica do Exército Norte-americano, a experiência de guerra de Koffler incluiu desembarcar com as tropas da Operação Tocha, quando os Aliados invadiram o Norte da África dominado pela França de Vichy, em novembro de 1942. Lá, ele começou a realizar transmissões de rádio em Rabat (Marrocos) e Argel (Argélia), antes de se tornar o correspondente do programa Voice of America – um posto que ele manteve durante toda a campanha italiana de 1944 e 1945.  

Sempre que uma cidade italiana era libertada, Koffler produzia um jornal que lá se chamava Corriere. Não foi surpresa, portanto, que, ao entrar para a UNESCO depois da guerra, ele elaborou, inevitavelmente, O Correio da UNESCO. Ele tinha um impulso criativo impressionante misturado a uma paixão pela editoração. Mais do que isso, era um trabalho editorial atrelado a uma perspectiva moral clara.

A revista era feita para um público “esclarecido”, em especial professores e estudantes, e, de fato, sua maior base de leitores estava em escolas, faculdades e universidades.

Seus temas escolhidos como principais foram: o impacto da ciência na vida humana, problemas raciais, arte e cultura, direitos humanos, história e arqueologia, diferenças culturais e conflitos entre os povos.

A amplitude da gama de assuntos abordados é de tirar o fôlego. Na mesma edição, pode-se descobrir as ameaças enfrentadas pelo templo de Borobudur, na Indonésia, pelo templo Sri Ranganathaswamy em Srirangam, na Índia, e pelo Parthenon, na Grécia. Nas páginas do Correio, é possível admirar o trabalho de Masaccio, pintor florentino do século XV, bem como o trabalho dos Aborígines da Australia. Há uma edição celebratória do aniversário de 70 anos de Einstein's, outra dedicada a Tchekhov, e, ainda, outra dedicada a Rabindranath Tagore.  

Há também muitos artigos sobre ecologia e conservação, especialmente sobre oceanografia e biologia marinha – O Correio era verde avant la lettre, ou bem antes de seu tempo.

Os artigos são notavelmente bem escritos e belamente apresentados. Em 1954, mudou-se o formato da revista para incluir ilustrações coloridas – o que estabeleceu novos padrões para a época.  

A gama de colaboradores é como um check-list da cultura do século XX. A tradição de excelência estabelecida por Sandy Koffler se manteve ao longo dos anos. Os colaboradores de O Courier incluem Jorge Amado, Isaac Asimov, Jorge Luis Borges, Anthony BurgessAimé Cesaire, Arthur C. Clarke – apenas para mencionar a nata dos nomes entre as primeiras letras do alfabeto. A revista também cobria os principais eventos das Nações Unidas e da UNESCO. Quando a Declaração Universal dos Direitos Humanos foi elaborada, por exemplo, dedicou-se uma edição de O Correio a ela.

The UNESCO Courier, March 1967.
The UNESCO Courier, March 1967.
© UNESCO

Racismo como prioridade na agenda

Ações contra o racismo foram prioridade da agenda da UNESCO desde o início. Uma campanha explícita contra o regime de apartheid na África do Sul foi criticada por enfocar um país, deixando de lado outros problemas relativos a direitos humanos. O argumento foi acertado. Qualquer um que veja a lista de nações que assinaram oficialmente a Declaração Universal e que coloque em questão a repressão política e a censura, o tratamento cruel das minorias, a discriminação contumaz das mulheres etc., em alguns desses países estaria perdoado por reagir com forte cinismo.

Além do mais, a campanha contra o apartheid ocorria em um mundo no qual os impérios britânico e francês ainda gozavam de plenos poderes, onde as leis de Jim Crow – que impunham a segregação racial – ainda eram um modo de vida no Sul dos Estados Unidos, e onde divisões de casta na Índia ainda estavam em vigor.

O primeiro artigo de O Correio que abordou diretamente a questão da raça veio em novembro de 1949: “The question of race and the democratic world” (A questão da raça e do mundo democrático, em tradução livre), por Arthur Ramos. Um psicólogo e antropólogo brasileiro que foi diretor do Departamento de Ciências Sociais da UNESCO, Ramos combateu o racismo durante toda sua vida, e foi preso duas vezes pela polícia especial brasileira durante a ditadura de Getúlio Vargas.

O artigo argumentava que: “Em qualquer discussão sobre a reorganização do mundo pós-guerra, deve-se dar particular atenção à antropologia. Nenhuma outra ciência desviou-se tanto de seus fins verdadeiros. Em seu nome, nações inteiras lançaram mão de conflitos, para defender o falso ideal da supremacia racial ou étnica. É, portanto, totalmente natural que a antropologia, de volta a seu lugar adequado e livre dos mitos com os quais foi encoberta, possa agora transmitir sua mensagem científica ao mundo”.

Depois, quando foi lançada a Declaração sobre a Raça e os Preconceitos Raciais da UNESCO ("Statement on Race”) O Correio de julho-agosto de 1950 trazia a manchete: “Fallacies of Racism Exposed” (Falácias do racismo desmascaradas, em tradução livre). A declaração foi publicada por completo, com as conclusões na primeira página. Foi acompanhada por um artigo, “Race and civilization” (Raça e civilização, em tradução livre), de Alfred Métraux, o antropólogo argentino nascido na Suíça.

Métraux, que entrou para a UNESCO em 1947, e foi diretor da Divisão para o Estudo dos Problemas de Raça em 1950, exerceu um papel central nas iniciativas antirracismo da UNESCO. Ele foi o principal coordenador por trás das primeiras declarações – a primeira em 1950, e sua revisão em 1951. Ele era amigo próximo de Koffler e apoiava entusiasticamente O Correio. Com mais de 20 artigos em seu nome, Métraux foi um dos mais prolíficos colaboradores da revista, até sua morte, em 1963.  

The UNESCO Courier, November 1971.
The UNESCO Courier, November 1971.
© UNESCO

Contestando crenças enraizadas

Da perspectiva atual, observamos ingenuidades óbvias nos argumentos das declarações sobre raça. Primeiro, havia uma enorme confiança no poder da “ciência”: de que a antropologia é “científica” e, assim, estabeleceria conclusões com certeza inatacável. Segundo, alguns dos exemplos são claramente discutíveis: a mesma edição de julho-agosto de 1950 tinha uma ilustração, na página 8, que acompanhava a declaração, mostrando um grupo de maoris da Nova Zelândia acima da legenda “Racial harmony” (Harmonia racial, em tradução livre). Alguém pediu a opinião dos maoris sobre isso?

Referindo-se aos Estados Unidos, Ramos escreveu, na edição de novembro de 1949: “[...] depois de muitos anos de esforços em vão, a política de proteção de indígenas parece ter se tornado mais humana e científica. Aqui é uma questão não apenas de proteção das “reservas” indígenas, mas de respeitar as características de sua civilização, materiais ou não; [...]”. Hoje, poucos nativos americanos ficariam satisfeitos com as palavras humana, científica e respeitar como descrições da maneira pela qual são tratados .

No mesmo número, Ramos elogiou o trabalho do Serviço de Proteção dos Índios do Brasil e escreveu que “os resultados têm sido muito animadores”. Os cintas largas, os ianomâmis e muitos outros grupos indígenas da Amazônia viriam a ser vítimas de atrocidades e continuam a sofrer discriminação até hoje.

TA edição de O Correio de agosto-setembro de 1952 abordou um relatório sobre as relações raciais no Brasil. que foi precursor de um grande estudo da UNESCO sobre raça no país. Todos os colaboradores argumentaram com base em uma crença que era comum na época – a de que o Brasil representava o retrato de uma harmonia racial – com uma exceção. Luiz de Aguiar Costa Pinto, um dos autores da Declaração de 1950 da UNESCO, “A questão racial”, escreveu nessa edição de O Correio: “[…] a integração harmônica que é vista como característica das relações inter-raciais no Brasil não corresponde aos fatos revelados por investigações sociológicas. Falou-se tantas vezes e por tanto tempo que não existe preconceito racial no Brasil, que essa afirmação que foi disseminada pelo mundo finalmente se tornou motivo de orgulho nacional brasileiro. No entanto, por trás desse dogma existem sentimentos de amargura e um evidente mal-estar”.

Como as discussões em O Correio sempre foram robustas e dinâmicas, as complacências inevitáveis e as ideias recebidas são abaladas e contestadas.

A maior conquista das Uquatro declarações da UNESCO sobre a questão racial ifoi o distanciamento gradual da definição “científica” ou “biológica” de raça. Elas puseram abaixo qualquer justificativa ou base científica para o racismo e proclamaram que raça não é um fato biológico da natureza, mas um mito social perigoso.

Décadas depois, no que diz respeito à questão racial, ninguém consegue olhar para o nosso mundo com muito conforto. Porém, podemos ouvir a esperança e a bondade intrínseca nas palavras de Métraux em “Race and civilization” (O Correio da UNESCO, julho-agosto de 1950): “Há algo de implacável neste conceito de raça. A barbaridade do nosso tempo é mais impiedosa e mais absurda do que a da assim chamada Idade das Trevas; pois o preconceito racial é um mito ignorante e repugnante. Seu desenvolvimento em pleno no século XX sem dúvida será visto em épocas futuras como um dos episódios mais vergonhosos da história”.

Os artigos de O Correio sobre raça demonstram uma iniciativa de campanha corajosa e determinada. Com alguns ajustes, essas declarações são tão adequadas hoje em dia quanto o foram no passado. A integridade dos argumentos são parte dos pontos fortes da publicação, nem um pouco constrangidos por disciplinas acadêmicas limitadoras e posturas profissionais protecionistas. A visão inspiradora, educativa e cultural oferecida pelo Correio é parte de uma vigorosa perspectiva moral sobre o que a sociedade humana pode vir a ser.

 

Com este artigo, O Correio da UNESCO se une à celebração do Dia Internacional para a Eliminação da Discriminação Racial, 21 de março.

Alan Tormaid Campbell

Por muitos anos, Alan Tormaid Campbell (Reino Unido) foi professor de antropologia social na Universidade de Edimburgo, na Escócia. Desde 1974, ele tem se envolvido com os wayãpis, uma etnia indígena que vive na floresta amazônica no Norte do Brasil. Seu livro mais conhecido sobre os wayãpis é Getting to Know Waiwai (Conhecendo os waiwai, em tradução livre) (1995).