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Idea

As implicações socioculturais da COVID-19

29/05/2020
03 - Good Health & Well Being
16 - Peace, Justice and Strong Institutions

O professor Fethi Mansouri, titular da Cátedra UNESCO para Diversidade Cultural e Justiça Social na Universidade Deakin, em Melbourne (Austrália) e coordenador da Rede UNITWIN para o Diálogo Inter-religioso e a Compreensão Intercultural, compartilha suas opiniões sobre as implicações socioculturais da COVID-19.

Em todo o mundo, a resposta à COVID-19 tem sido amplamente baseada no distanciamento físico, embora, infelizmente, isso tenha sido referido nos discursos formal e informal de forma direta como distanciamento social. Há uma grande diferença entre os dois conceitos. O distanciamento físico não exclui necessariamente a conexão social; por outro lado, o distanciamento social, inevitavelmente, pressupõe a desconexão.

Entretanto, para que o distanciamento físico também não ocasione distanciamento social e desconexão interpessoal, certas condições sociais devem ser atendidas e disponibilizadas de maneira indiscriminada. Isso inclui, em primeiro lugar, o acesso à infraestrutura básica, como abrigo, internet e necessidades básicas da vida diária. Infelizmente, em todo o mundo, e mesmo em algumas sociedades desenvolvidas, nem sempre é isso que acontece. As desigualdades sociais arraigadas e a marginalização econômica tiveram como resultado o fato de que grandes proporções das populações mundiais são privadas das necessidades humanas mais básicas, sem falar da capacidade de estar fisicamente distantes e, ao mesmo tempo, socialmente conectadas e apoiadas de forma adequada para atender às necessidades de vida.

O problema das desigualdades sociais e econômicas estão ampliando o desafio de administrar a rápida propagação da COVID-19 em todo o mundo, mas o que também emergiu daí foi o racismo sistemático, especialmente contra pessoas de origem asiática, nas sociedades ocidentais de emigrantes. Na verdade, há muitas evidências anedóticas de ataques racistas em muitos países. Este não é um fenômeno totalmente novo; um conjunto significativo de evidências existentes mostra que, em tempos de crises – sejam elas econômicas, ambientais, de segurança ou relacionadas à saúde –, muitas vezes, os grupos minoritários são transformados em bodes expiatórios e sujeitos a discursos e práticas racistas, excludentes e violentos.

A COVID-19 já está nos mostrando uma variedade de padrões de racismo com foco nos asiáticos, que vão desde o bullying cibernético até ataques físicos, injúrias racistas e uma série de teorias da conspiração xenófobas que têm sido articuladas não apenas por cidadãos comuns, mas também por certos políticos e líderes mundiais. Isso vai contra a agenda do diálogo intercultural, cuja ênfase está no contato intercultural, na compreensão mútua, no engajamento respeitoso e na solidariedade intercomunitária.

No entanto, talvez um dos principais paradoxos desta pandemia seja que os desafios do distanciamento físico, bem como da interrupção dos sistemas normais de prestação de serviços, fizeram com que a solidariedade também tenha vindo à tona em nossas respostas coletivas, tanto no âmbito local quanto no transnacional.

De fato, temos visto muitas práticas criativas lideradas por comunidades que surgiram como resposta aos lockdowns da COVID-19, as quais refletem os princípios básicos do diálogo intercultural. Esses princípios abrangem desde o surgimento de exemplos do mundo real, como os cidadãos de Nova York, Paris e tantas outras cidades se reunindo todas as noites para aplaudir os profissionais da saúde, até a solidariedade intracomunitária online, por meio da qual vizinhanças locais trabalham juntas para garantir que os mais vulneráveis, os mais velhos e os menos abastados também recebam apoio e cuidados. Durante um período quando menos serviços sociais estão sendo prestados, e muitas vezes não da forma tradicional como muitos beneficiados estão acostumados a receber, atos de altruísmo e de cuidados estão sendo relatados diariamente – por indivíduos e comunidades em bairros que entregam cestas básicas aos necessitados ou verificam os vizinhos idosos e outras pessoas que precisam de apoio.

É verdade que a cidadania surgiu como o principal indicador de pertencimento. No entanto, à medida que os governos aumentam os controles de fronteira e fecham aeroportos, muitos grupos da sociedade civil têm trabalhado arduamente para defender e exigir direitos e proteções para não cidadãos, especialmente solicitantes de asilo e trabalhadores temporários.  

No âmbito internacional e em termos das relações entre Estados-nação, a solidariedade transnacional se tornou ao mesmo tempo uma vítima da COVID-19 e um componente fundamental da estratégia mundial de resposta coletiva. De fato, pelo menos no início, a solidariedade transnacional foi sacrificada na pressa e na esperança de conter, suprimir e eliminar a COVID-19. Esse foi o caso em muitos países que se mobilizaram às pressas para fechar suas fronteiras para não cidadãos, interromper a mobilidade de estudantes internacionais, fechar aeroportos e praticamente impedir o comércio e o turismo internacionais. Todas essas medidas representam um golpe significativo para a globalização e sua dependência na livre circulação de serviços, pessoas e bens. Elas também são um golpe para os princípios orientadores do diálogo intercultural, que requerem envolvimento deliberado em questões de interesse mútuo, incluindo travessias de fronteira e intercâmbios de bens e serviços que afetam as vidas e os meios de subsistência de indivíduos entre as fronteiras.  

Porém, a situação atual da COVID-19 também nos oferece esperança por novas maneiras para construir e manter a solidariedade entre diversas origens culturais, tradições religiosas, sistemas políticos e fronteiras geográficas. Esta nova e mais positiva solidariedade transnacional foi demonstrada na forma de “diplomacia médica” intercultural e transnacional, por meio da qual os países têm enviado médicos, paramédicos, medicamentos e equipamentos médicos entre as fronteiras para os países atingidos mais gravemente pela pandemia e carentes de certas especialidades médicas e suprimentos. Cuba, China e Índia são bons exemplos para se indicar, com envios de médicos, medicamentos e equipamentos hospitalares utilizados respectivamente no engajamento nessa nova forma de solidariedade transnacional, em um momento de crise aguda de saúde. Essa forma de envolvimento transnacional destaca a natureza profundamente interseccionada do nosso mundo globalizado e até que ponto ele não é apenas intimamente hiperconectado, mas, de forma mais crítica, irreversivelmente interdependente. A nossa ordem mundial pós-COVID-19 deve levar em conta as lições desta pandemia, pois ela reconfigurou as relações internacionais, o envolvimento intercultural e a solidariedade transnacional de forma a garantir que sejamos mais capazes de lidar com crises futuras quando elas ocorrerem.

O surto do coronavírus em Wuhan, na China, e sua rápida propagação pelo mundo, exemplifica essa interdependência e enfatiza a necessidade urgente de uma maior colaboração nas áreas médicas, tecnológicas, econômicas, ambientais e sociais, a fim de garantir a segurança e o bem-estar de todos os cidadãos globais, independentemente de geografia, etnia, religião ou nível de desenvolvimento econômico nacional.

O que pandemias como a da COVID-19 expõem é que a comunidade global será capaz de conter vírus altamente infecciosos apenas se houver apoio ao sistema de saúde pública nos países menos desenvolvidos. Eliminar a atual ameaça à saúde, bem como outras ameaças mundiais, requer não menos, mas, pelo contrário, mais solidariedade transnacional, mais diálogo intercultural e uma capacitação mais equitativa em relação aos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável. Vale a pena buscar a solidariedade transnacional e o diálogo intercultural, não apenas por suas tendências utópicas, cosmopolitas e éticas, mas também por seus papéis práticos, vitais e transformadores para garantir a segurança, o bem-estar e a sustentabilidade de toda a comunidade global.

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O professor Fethi Mansouri, PhD, é diretor do Instituto Alfred Deakin para a Cidadania e a Globalização na Universidade Deakin, em Melbourne, Austrália. Ele é o titular da Cátedra UNESCO para Diversidade Cultural e Justiça Social (UNESCO Chairholder for Cultural Diversity and Social Justice), e e coordenador da Rede UNITWIN para o Diálogo Inter-religioso e a Compreensão Intercultural (UNESCO UniTwin Convenor for Inter-religious Dialogue and Intercultural Understanding – IDIU)..

Email: fethi.mansouri@deakin.edu.au

Fethi Mansouri | Alfred Deakin Institute | UNESCO Chair Cultural Diversity and Social Justice

Livros recentes:

(2019), ‘Contesting the Theological Foundations of Islamism and Violent Extremism’.

(2019, 2. edição em francês): ‘L'interculturalisme à la croisée des chemins: perspectives comparatives sur les concepts, les politiques et les pratiques’. UNESCO Publishing, Paris.

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As ideias e opiniões expressas neste artigo são de responsabilidade do autor e não refletem necessariamente as opiniões da UNESCO. As designações utilizadas nesta publicação e a apresentação dos dados nela contidos não implicam a expressão de qualquer opinião por parte da UNESCO sobre a situação jurídica de países, territórios, cidades, áreas ou suas autoridades, ou sobre a configuração de suas fronteiras ou limites.