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Grande Angular

Migração de espécies: uma revolução silenciosa

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A planta "Androsace helvetica" cresce no cume da montanha Piz Quattervals, nos Alpes de Livigno, na Suíça.

Menos espetaculares e não tão conhecidas quanto o recuo das geleiras ou o derretimento do gelo ártico – indicadores claros do aquecimento global –, as mudanças que alteram a distribuição das espécies também são menos perceptíveis. Essas mudanças têm consequências diretas sobre a nossa alimentação e a nossa saúde, além de afetarem a biodiversidade.  

Jonathan Lenoir 

Pesquisador da área de ecologia, do Centro Nacional de Pesquisa Científica da França (Centre National de la Recherche Scientifique – CNRS), Universidade de Picardie Jules Vernes, em Amiens, na França.

Há mudanças ocorrendo por todo o planeta, em todas as latitudes. Muitas vezes, nós não temos consciência delas. No entanto, estão alterando as áreas de distribuição das espécies das quais dependemos diretamente. Essa redistribuição de seres vivos é a manifestação palpável do movimento invisível das isotermas – linhas imaginárias com a mesma temperatura que se movimentam em direção aos polos e cumes de montanhas, como ondas, impulsionadas pelo aquecimento global. 

A identificação dessas mudanças na distribuição de seres vivos requer grandes quantidades de dados, tanto históricos quanto recentes. Ao documentar de forma meticulosa a biodiversidade ao longo do tempo, os cientistas são capazes de mapear a distribuição de espécies passadas e presentes, em uma tentativa de detectar possíveis migrações.

Para ambientes terrestres, os cientistas identificaram migrações que são orientadas principalmente para os polos em latitude e para os cumes de montanhas em altitude. Isso inclui mamíferos, aves, anfíbios, peixes de água doce, insetos e até organismos menos móveis, como as plantas. Em grande parte, a velocidade média de migração desses organismos nas terras baixas é atrasada pela fragmentação dos habitats, relacionada às atividades humanas.

Esse não é tanto o caso de áreas montanhosas, onde o impacto das atividades humanas é reduzido e as isotermas estão mais próximas umas das outras. 

Na França, espécies de plantas de floresta migraram a uma velocidade média de 30 metros por década, entre 1971 e 1993. Impulsionadas pelo aumento da temperatura e pela mudança das isotermas, muitas espécies vegetais já atingiram o cume de várias cadeias de montanhas europeias. Observações realizadas em 302 cumes de montanha na Europa mostram que o número de espécies de plantas que colonizaram esses locais está aumentando ao longo do tempo – uma tendência que está se acentuando com a aceleração do aquecimento global.

Em média, o ganho em espécies – que afeta 87% dos cumes europeus estudados – foi cinco vezes maior entre 2007 e 2016, em comparação com o período entre 1957 e 1966.    

Nova coabitação de espécies

Esses fenômenos levaram a uma nova coabitação entre espécies endêmicas de certos cumes – como o androsaceus ciliado, presente apenas nos Pirineus orientais – e espécies mais competitivas encontradas em níveis mais baixos, como a arnica de montanha ou a grama de prado dos Alpes. O aumento da biodiversidade nos cumes europeus pode parecer, a princípio, uma boa notícia. No entanto, no longo prazo, existe o risco de a competição entre as espécies colonizadoras e as endêmicas prejudicar as últimas e levar ao desaparecimento total de algumas delas.

Esse fenômeno de extinção já foi observado nas montanhas peruanas – oito de 16 espécies de aves observadas em 1985, que viviam em cordilheiras a mais de 1,3 mil metros de altitude, não foram mais encontradas em 2017. 

No ambiente marinho, a maioria dos organismos é muito mais sensível a um aumento de temperatura. O movimento das espécies em direção aos polos é, portanto, muito mais rápido e significativo nos mares e oceanos do que em terra. A média de migração dos organismos marinhos é de cerca de 60 quilômetros por década – cinco a seis vezes mais rápida do que a dos organismos terrestres. 

Alguns estudos também mostraram migrações verticais de várias espécies de peixes marinhos para águas profundas, a fim de escaparem do aumento de temperatura nas águas de superfície. No Mar do Norte, por exemplo, os peixes que vivem na zona demersal (leito do mar) migraram para as profundezas a uma velocidade média de 4 metros por década, entre 1980 e 2004. Essas rápidas mudanças na biodiversidade marinha são mais espetaculares e, portanto, mais facilmente perceptíveis do que em ambientes terrestres. Elas fazem com que os mares e o oceano sejam os melhores monitores das consequências do aquecimento global na redistribuição da vida.

Os seres humanos dependem da biodiversidade para alimentação, saúde, bem-estar, atividades de produção, atividades recreativas e enriquecimento cultural. Consequentemente, uma redistribuição mundial dessa biodiversidade terá impacto em todos esses aspectos.

O movimento das espécies que afetam nossos recursos haliêuticos (ligados à pesca) é particularmente impressionante e tem um efeito direto na nutrição humana. Esse é particularmente o caso da migração, para o norte, dos cardumes de cavalinha no Atlântico Norte – que, até 2010, havia ocasionado significativos conflitos econômicos e geopolíticos entre países europeus que pescam na região. 

O movimento das espécies de peixes tem efeito direto na nutrição humana

Uma fonte de conflito entre países

Como a biodiversidade não conhece fronteiras, nós podemos esperar um aumento da quantidade de conflitos e tensões entre países vizinhos, relacionados ao movimento de espécies comerciais de uma zona econômica para outra. A distribuição geográfica de todos os bens e serviços oferecidos pela biodiversidade será completamente reorganizada em âmbito mundial. 

O mesmo ocorre com a redistribuição de vetores de patógenos e, portanto, de doenças. Com o aquecimento global, o surgimento de novos vetores de doenças (mosquitos e carrapatos) em latitudes e altitudes anteriormente livres dessas espécies já é uma realidade – com custos sanitários, sociais e econômicos que devem ser antecipados.

O aumento das temperaturas favorece a migração altitudinal de mosquitos que carregam os parasitas causadores da malária

Na América do Sul e na África Oriental, as populações que vivem em regiões montanhosas são mais afetadas pela malária do que foram no passado. O aumento das temperaturas favorece a migração altitudinal de mosquitos que carregam os parasitas causadores da doença. No norte da Europa, verões mais secos e invernos mais amenos estão alterando a abundância e a distribuição de pequenos mamíferos, como roedores – os principais hospedeiros do carrapato Ixodes ricinus, vetor da bactéria Borrelia burgdorferi, o patógeno da doença de Lyme. 

Além desses impactos diretos no bem-estar humano, a redistribuição dos organismos vivos também tem um efeito indireto na própria dinâmica do aquecimento global. Por exemplo, no Ártico, da mesma forma, o derretimento do gelo do mar, a expansão de arbustos de tundra e o avanço da floresta boreal em direção ao Polo Norte são fatores que reduzem o albedo (refletividade) do Polo Norte e, portanto, acentuam o aquecimento.

Uma resposta ao aquecimento global

Essa redistribuição de seres vivos não ocorre necessariamente de forma sincronizada com o aquecimento global. Em geral, a velocidade média de movimento observada em direção aos cumes das montanhas é de 18 metros por década, metade da velocidade com que as isotermas se moveram para cima no mesmo período – 40 metros por década, em média. Em espécies de plantas de floresta, por exemplo, a reprodução é a única maneira de deslocar a próxima geração – por dispersão, na forma de sementes. 

Apenas as sementes que foram deslocadas em condições climáticas favoráveis germinam e permitem o estabelecimento de uma nova população além da faixa inicial de distribuição. Com isso, as espécies com ciclos de vida longos e lentos, como as árvores, apresentam atrasos ainda maiores na resposta às pressões do clima. Esses atrasos significam que, mesmo se o aquecimento fosse interrompido hoje, nós continuaríamos a observar mudanças na distribuição da vida nas próximas décadas.

A redistribuição de organismos vivos em resposta ao aquecimento global apresenta novos desafios. Há, portanto, uma necessidade urgente de intensificar os esforços para apoiar a pesquisa, a fim de melhorar o nosso entendimento sobre as consequências desse fenômeno – e levar isso em consideração ao tomar decisões políticas e econômicas. É por meio da governança internacional adequada, integrando essa dinâmica mundial, que aumentaremos as possibilidades de minimizar as consequências negativas que essa redistribuição de seres vivos pode ter sobre o nosso bem-estar. 

Leia mais:

África: a corrida pelo ouro azul, O Correio da UNESCO, jan./mar. 2021.
O clima e a justiça social, O Correio da UNESCO, jul./set. 2019.
O fardo insuportável da tecnosfera, O Correio da UNESCO, abr./jun. 2018.

 

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